Política Pós-Factual: O dia em que o PIB destruiu uma narrativa?

Post-Truth Politics

Já ouviu falar da política pós-factual? Está na moda, virá do inglês Post-Truth Politics e poderia ser traduzida também por “política além da verdade ou “política pós-verdade” . No fundo retrata uma forma de fazer política que estará a fazer escola e procura ser imune ao confronto com a realidade, à verificação da veracidade do que é afirmado, oferecendo ainda no seu arsenal, a construção de uma verdade alternativa.

 

A verdade é irrelevante

Essa verdade alternativa, construída com base em rumores ficcionados é transmitida, ampliada e consolidada através de redes sociais, contribuindo para a construção tribal, radicalizada entre pares e que procurará condicionar a perceção pública, mais vasta, servindo amiúde para normalizar muito do que até ali seria considerado extremista, impróprio, indigno e inaceitável.

Como complemento, esta política pós-verdade permite ir construindo uma imagem muito negativa do adversário, praticamente inelutável, imune, como disse, à desconstrução. A validação da verdade estará já comprometida, quer pela ausência de disponibilidade dos próprios media, quer pela atuação efetiva de oposição a qualquer exercício racional ou intermediação independente.

 

O intermediário ou é inimigo ou é instrumental

Como consequência de uma política pós-factual bem sucedida, o intermediário desaparece e é por vezes diabolizado (tipicamente o meio de comunicação social).

Quanto muito, esse intermediário, se ingénuo, servirá o propósito de institucionalização da narrativa, vítima do simulacro de uma dúvida metódica que acaba por expor, em paridade, o que é comprovável com o que se disfarça de comprovável, dando espaço à política pós-factual para alimentar a sua suspeição ou a sua tese negacionista.

Quando se apresenta de forma dialética uma história comprovável com uma construção ficcionada querendo dar espaço para a apreciação do leitor sem levar até ao fim o escrutínio, o que resta de relevante é um rasto de artigos na internet, nos media, com a chancela de órgãos de comunicação social prestigiados que ao se demitirem de intermediar efetivamente aquilo que apresentam aos seus leitores, cria a oportunidade para que o capitulo seguinte seja elaborado com “credibilidade” reforçada pelos políticos da pós-verdade.

A partir daí, a história abandonou o reino daquilo que pode ser desmontado recorrendo à prova dos factos e ter-se-á convertido em definitivo numa prosa poderosa, quer para manter fidelizados o radicalizados, quer para ir fazendo estragos na mobilização de quem se quer derrotar, infectando também com demasiada facilidade fazedores de opinião e editorialistas.

 

O crime perfeito:

Em suma, o crime perfeito completa-se ao encaixarem peças do puzzle da sua narrativa como “continuação” dos artigos prestigiados.

Isso faz-se no ciberespaço, em sítios que controlam, nas redes sociais e, de forma mais abrangente, em media clássicos onde os interlocutores com assento regular nas colunas de opinião acabam por sindicar a narrativa levando-a para o coração do debate e da atualidade.

 

O PIB destruiu uma narrativa?

A revelação dos dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística relativos ao PIB do terceiro trimestre de 2016 produziu um confronto chocante com uma narrativa que se vinha configurando de sucessiva desvalorização das críticas objetivas à extemporaneidade da sentença sobre a política económica do atual governo e de sucessiva desvalorização dos indicadores económicos que vinham sendo divulgados paulatinamente pelas instituições oficiais sobre dados sectoriais e parcelares referentes a atividade económica. Recorda-se a menorização dos dados sobre a recuperação do emprego a assumirem o papel charneira nesta questão.

É difícil compreender como uma sentença sobre uma política económica iniciada há escassos meses, com concretização plena ainda por completar, passados que estão cerca de seis meses desde a produção de efeitos do primeiro orçamento do estado da lavra do atual governo, possa ser proferida neste tempo e no modo como tem vindo a ser alimentada, quer pelos naturais opositores, quer pelos fazedores de opinião com especiais responsabilidades e suposta competência de análise económica.

Nem a sentença era justa, nem os factos agora revelados provam em definitivo um contra-sentença, reconheça-se.  Mas a verdade é que a evolução não menos que espetacular do PIB no terceiro trimestre foi ela própria amplificada pela sentença da desgraça, pelo sentimento de inevitabilidade do definhamento económico que escassas horas antes da difusão dos dados era ainda tema de artigos de jornal que se preparavam nas redações nacionais e internacionais.

Mas essa mesma espatacularidade e choque levaram-me a juntar este facto caseiro à lista de evidências internacionais sobre a proliferação da política pós-factual ou pós-verdade.

A narrativa, neste caso, parece, de facto, condena a ser, no mínimo reescrita, mas fossem os dados um pouco menos que espetaculares e estou certo que singraria, procurando condicionar a própria realidade, impondo-se como um desejo auto-cumprido, ao alimentar a descrença e ao minimizar os efeitos positivos de uma avaliação honesta e factual da evolução económica transmitida pela maioria dos indicadores que observamos.

 

A narrativa catastrofista terminou mesmo?

Prefiro ser prudente. Neste tempo em que a aparência, a perceção ressurge em grande força como o aspeto determinante para o sucesso político, agora potencialmente cavalgando de forma desabrida a mistificação organizada e profissional, qualquer menor empenho de quem deve zelar pela sua narrativa factualmente comprovável, qualquer convencimento de que “a verdade virá ao de cima” será uma atitude temerária e ingénua.

Quando se destrói ativamente o descernimento do juiz, quando se ataca o intermediário, quando se manipula e controla o fazedor de opinião e uma parte relevante dos media que ditam a agenda, o poder de quem vive num mundo pós-factual revela-se especialmente resiliente e a perceção de que se está perante uma guerra duradoura é fundamental para aspirar a alguma forma substantiva de sucesso.

Será fundamental dar guerra fazendo-o sem se cair numa guerra de narrativas efabuladas, zelando pelo intermediário, aliado natural de quem insiste em construir algo efetivamente comprovável e controlando pulsões arrogantes ou de superioridade moral como instrumento fundamental de batalha no espaço público.

Humildade, clareza discursiva, brutal tenacidade e capacidade de intervir de forma ativa em todos os níveis de participação junto da comunidade, sem desprezar o contacto direto mesmo nas redes sociais, serão fundamentais.

Por fim, o registo de que o profissionalismo, se sinónimo e organização e cooperação de vontades, não deve ser encarado como desprezável, pelo contrário. A refutação da narrativa pós-factual muito raramente terá sucesso se feita de forma desestruturada, sem a coordenação de quem a repudia.

 

O futuro

Reagrupar, pensar fora da caixa, com a humildade de encarar também as razões para tão bom pasto que se está a dar para esta nova escola de fazer política são os trabalhos de casa de quem percebe o conflito fulcral que está a ser travado um pouco por todo o mundo ocidental. Mas essas serão questões para outras reflexões e outras prosas.

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Sobre a Post-Truth Politics recomendo este artigo de referência do New York Times: The Age of Post-Truth Politics 

E ainda este: Bernie Sanders Could Replace President Trump With Little-Known Loophole 

Governo do Povo

“There is a war between the rich and poor,
A war between the man and the woman.
There is a war between the ones who say there is a war
And the ones who say there isn’t.
Why don’t you come on back to the war, that’s right, get in it,
Why don’t you come on back to the war, it’s just beginning.”

Excerto do poema There is a War, de Leonard Cohen

Desde as primeiras formas de democracia na antiguidade grega até ao momento em que escrevo estas palavras terão decorrido mais de 2500 anos.

O conceito de democracia, o governo do povo, evoluiu, a sua popularidade e utilização histórica enquanto forma de canalização do poder conheceu muitos episódios.  Hoje, a democracia representativa será a forma mais popular de governo democrático surgindo acompanhada pela igualdade de direitos, liberdade  e o Estado de Direito.

É muito provavelmente a forma mais eficaz de mediação pacífica e ordenada das tensões e conflitos que surgem no seio de um comunidade, bem como de gestão dos recursos com vista ao bem comum, sendo dotada de várias opções, autênticas alternativas de gestão, sob a forma de programas ideológicos protagonizados por partidos políticos que assumem a representação popular.

E contudo… Estamos em guerra! Uma batalha permanente para reafirmar a defesa do que se adquiriu, para recuperar o que se perdeu ou para atingir aquilo que ainda nunca passou de um desejo.

Não há boa política sem representantes bem preparados, não há representantes bem preparados sem uma sociedade instruída e participativa ou sem órgãos de comunicação social zelosos pelos seus princípios de imparcialidade e escrutínio sistemático em defesa da verdade.

Recordado o essencial, é preciso agora partir para o concreto, para o diabo dos detalhes que, na prática e de forma irrefutável, tem vindo a contribuir para um sentimento de crise do sistema político e de desligamento face à fonte do poder: o eleitor representado.

Como resolver esta distância? Como participar de forma ativa e consequente fora dos circuitos habituais e fechados? Como pressionar o poder político ou quem nos quer representar para acertar passo com a sua comunidade?

Como conjugar a participação externa com a participação militante, interna aos partidos de modo a contribuir para a sua permanente reforma e para a sua aquisição de competências? Como aperfeiçoar o sistema eleitoral e a própria democracia interna nos partidos? Como definir melhores políticas públicas e como as avaliar? Como conhecer melhor os representantes que temos ou que se nos oferecem?

Não faz sentido estar a ser exaustivo nestas primeiras palavras mas é por aqui que procuraremos fazer algum caminho. Como escrevemos na página de apresentação, inquietar o leitor (e quem escreve) da sua eventual trincheira, será um pequeno passo que, se alcançado, não desdenharemos.

Seja bem-vindo quem vier por bem. Para o bem de todos, da melhor forma que cada um achar conveniente, no respeito pela inteligência que caracteriza a nossa espécie.

Bem hajam e bem ajam.